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A história de antigas profissões que resistem ao tempo na Ladeira da Conceição


Arcos da Montanha abrigam ferreiros e marmoristas que são memórias vivas de uma Salvador do passado

É impossível saber o horário de funcionamento do arco 26. Depende de sorte para encontrá-lo aberto. Tudo na Ladeira da Conceição tem tempo próprio, todos são donos do próprio fuso. Nada é fora de hora, com pressa, na correria. Há 63 anos neste mesmo local, o ferreiro Zé Diabo, que integra a turma dos resistentes da ladeira, parece sair de um livro de Jorge Amado. Foi preciso marcar cinco vezes com ele para conseguir bater um papo sobre a profissão e tirar fotos.

Na primeira, ele simplesmente esqueceu o compromisso e não abriu seu estabelecimento. Depois, tomou todas numa festa de terreiro e resolveu passar o final de semana por lá, deixando de lado a entrevista marcada. No dia combinado para as fotos dele na forja, Zé Diabo estava bebendo e resenhando no bar de dona Ana dos Santos, no arco 14. Pediu uma rodada de cerveja e jurou que a fotógrafa Nara Gentil, do CORREIO, tinha vocação para ser Mãe de Santo. Não foi possível fotografá-lo naquele dia, logicamente. No outro, choveu. 

Aos 74 anos, Zé Diabo é perito na arte de fundir metais para Orixás. Melhor que ele, ninguém se atreve a dizer que é. De longe, parece um senhor simples. Com uma fisionomia desconfiada, não dá ousadia à toa. Contudo, basta ele ir com sua cara para se conhecer uma das figuras mais emblemáticas da Ladeira da Conceição. Conta piada e paga cerveja. Vira um Erê setentão. 

Zé é mais um resistente de uma Salvador esquecida pelo tempo, que ainda trabalha de forma artesanal e sobrevive em meio a modernidade tecnológica. Recém-reformada, a Ladeira da Conceição da Praia, que dá sustentação à outra famosa ladeira, a da Montanha, possui 15 arcos. Neles, estão abrigado artífices, ferreiros e marmoristas, além de um bar. Boa parte da comunidade é composta de heróis na arte de resistir e que não abrem mão do ofício secular e do lugar onde trabalham.

Quando a forja incendeia, é a hora de Zé Diabo transformar ferro em axé. Ogum e Exú são os mais solicitados (Foto: Nara Gentil)

Arte da permanência
“Nossa sobrevivência vem da insistência, do nosso aprendizado e da relação harmoniosa  entre nós. Vi os tempos áureos daqui, quando tínhamos alfaiates, sapateiros e carpinteiros. Era um centro comercial. A indústria produz em larga escala e tirou muita profissão. Mas eles não produzem arte como nós, artífices. Por isso temos que preservar a ‘Faculdade da Conceição”, disse o ferreiro Edmilson Rodrigues, que há 50 anos trabalha na Ladeira e não abre mão das marteladas contínuas para moldar o ferro a seu gosto. 

Edmilson, que assumiu o papel de líder comunitário do local, diz que a luta diária também é pelo lugar. “Na nova reforma, tememos um despejo coletivo, mas o prefeito (ACM Neto, na época) garantiu nossa permanência”, revela Edmilson, que lembra de uma outra reforma - a que foi feita pelo avô do ex-prefeito. 

Os sapatos de ACM
Entre os anos 60 e 70, lembra Edmilson, Antonio Carlos Magalhães, então prefeito, também requalificou o local. “Na época, um secretário de ACM, não lembro o nome, disse que todo mundo sairia daqui. Ficamos apavorados. Numa bela manhã, ACM chegou no meio da ladeira, olhou para nós,e disse que não deixaria ninguém sair. E ninguém saiu", relembra Edmilson. ACM, desde então, só fazia sapatos com um antigo sapateiro da ladeira. 

A subida ingrime não atrapalhou que outros nomes importantes na história de Salvador frequentassem o lugar. É aí que voltamos a Zé do Diabo. O ferreiro dos Orixás lembra com carinho seus maiores clientes. Pierre Verger, famoso fotógrafo francês, sempre pedia ferramentas de Orixás para o artífice, que tem o trabalho espalhado por diversos terreiros do Brasil. Dorival Caymmi e Carybé também gostavam dos serviços dele. “Carlinhos Brown vinha aqui direto também. Verger era um gringo que entendia. Não tinha dificuldade para fazer fundição para ele. Aquele branquelo entendia da coisa”, recorda. 

Seja famoso ou não, basta o cliente chegar no arco 26 para começar um espetáculo singular: a arte de fundir.  Enquanto a pessoa escolhe o santo, Zé já rabisca no velho caderninho o desenho que se transformará em metal. 

Qual  Ogum que você quer? Akorô? Então, precisa fundir duas espadas aqui, além das ferramentas ali, vai ficar lindo”, sugere Zé Diabo. Ou melhor, impõe. “Certa vez chegou uma madame querendo ferramenta para Oxóssi com cobre. Disse que era errado. Cobre é Xangô,Iansã! Ela teimou, mas não fiz. Depois, voltou mansa dizendo que o pai de santo dela me deu razão. Preciso de dinheiro, mas trabalho por amor”, diverte-se Zé, que não aderiu ao WhatsApp. “Se quiser falar, liga”.

Tanto conhecimento não é apenas pela vasta experiência na manipulação com o metal de santo. Zé Diabo já foi babalaxé, um dos cargos máximos do candomblé, religião de toda sua família, vinda de gerações. Filho de Oxalufã com Omolu, Zé preferiu renunciar ao cargo do terreiro da própria família: “É muita consumição, quero mais não. Vou no terreiro para dar comida aos meus santos e participar dos festejos. Sou muito jovem para tanta responsabilidade”. 

No apelido, José Adário dos Santos carrega o preconceito contra o candomblé. Ainda jovem aprendiz, Zé levava imagens de Exú para o lendário mestre de capoeira Camafeu de Oxóssi, que tinha uma loja no Mercado Modelo. “Meu mestre me mandava levar as imagens de Exú pra Camafeu, dentro de uma caixa. Quando chegava na entrada do Mercado, começavam a gritar ‘diabo, diabo, é vem o diabo!’ Alguns derrubavam a caixa, quebrando as imagens na minha frente. Não gosto, mas o apelido ficou”, lembra.

Bar fraternal Dona Ana Silva e Evandro dos Santos são donos do único bar do local, onde antigas maretrizes almoçavam diariamente nos anos 60 e já serviu de cenário pra novela da Globo. O neto, Samuel da Fonseca, adora passar o dia na Conceição (Foto: Nara Gemtil/CORREIO)

Mestres 
Às 7h30 da manhã, Adalto Venâncio dá bom dia ao pulmão com um cigarro de palha, enquanto aguarda seus ajudantes chegarem. O mestre marmorista tem 74 anos e, desde os 10, trabalha na Ladeira da Conceição. Hoje mestre, a maior patente entre os artífices, o marmorista lembra com carinho da pessoa que lhe ensinou tudo. “Meu pai era meu mestre. Só pequei uma vez com o velho. No auge da malandragem, me envolvi numa briga e fui preso. Sonho até hoje com a cara de decepção do meu pai. Ele não me batia, talvez preferisse. Depois daquilo, nunca mais decepcionei o velho. E passei tudo que ele me ensinou para filho, sobrinhas, todo mundo virou marmorista”, lembra.

Entre uma tragada e outra, Venâncio não esquece como era dura a vida no local. “Aqui filho chorava e mãe não via. Já vi foi coisa nessa ladeira. Uma vez um caminhão perdeu o freio lá na Montanha e parou aqui, matando motorista e pedestres. Vi sinhazinha virando meretriz. Quando chegava navio de fora, era uma rivalidade da zorra. Essa ladeira rolava briga entre nativos e militares. Hoje está mais tranquilo. Só frequenta a Conceição quem vem especificamente contratar um serviço nosso. Com esta nova reforma, espero que as pessoas também venham nos visitar e conversar um pouco. É aqui que Salvador respira”. 

Herança
A grande preocupação agora é para quem será deixado este vasto legado. Zé Diabo tem 12 filhos, 15 netos e três bisnetos. “Nenhum quis seguir os meus passos. Preferiram estudar”, avisa. Já seu Venâncio conseguiu plantar sementinhas, incluindo sua sobrinha, a marmorista Simone Venâncio. “Comecei como secretária, fui pegando na máquina e hoje sou marmorista com muito orgulho”, resume a primeira artífice mulher da  Ladeira da Conceição . 
Sabe a sensação que fica após conhecer a Ladeira? Que não se conhece a essência de Salvador só passeando pelo Pelourinho ou se banhando nas águas calmas do Porto da Barra. Suas ladeiras perdidas no tempo abrigam patrimônios vivos da Bahia. Em pele, osso, ferro fundido, mármore e, sobretudo, resistência.

Primeira marmorista da Conceição, Simone Venâncio lixa o mármore com  vista para a Baía de Todos-os-Santos (Foto: Nara Gentil/CORREIO)

Ladeira de amores, castelos e meretrizes

Num tempo em que as avós ainda eram meninas, a Ladeira da Conceição não abrigava apenas comerciantes e artífices. Quando a tarde caia e as lojas se preparavam para fechar, o local se transformava em espaço de amor, desilusões e malandragens. A ladeira já abrigou os melhores “castelos” da cidade, jeito carinhoso na época para denominar um brega. 

"Tempo bom que não volta mais. A gente criava barba com as meninas da ladeira. Lembro que era coisa fina, e tinha que ter muito respeito pelas meretrizes. Ninguém entrava de bermuda. Tinha que ser de calça. Traje de gala. Era coisa fina o brega”, lembra o marmorista Raimundo do Espírito Santo, com  76 anos, o mais velho entre os artífices dos arcos.

Seu Raimundo também recorda que todo dia alguém se apaixonava. ”Lembro de uma meretriz que um oficial da Marinha levou para o Rio de Janeiro e virou madame. Bom mesmo era quando vinham os gringos naqueles navios enormes. Eles chegavam cheio de joias e perfumes caros para as meninas. Elas recebiam, faziam juras de amor e nos vendiam a preço camarada. Eu só andava perfumado com as marcas mais caras da França. Ô bicho cheiroso era eu”, narra seu Raimundo.

Dona Ana dos Santos e Evandro Barreto, donos do único bar da ladeira, no arco 14, lembra com carinho das meninas, em especial de Bigode. “Era a mais bonita. Tinha um pelinho debaixo do nariz, nada demais. Chegou do Recôncavo depois do marido abandoná-la pra ficar com a empregada. Ela foi envelhecendo e começou a usar droga. Ficava pela rua, perambulando como um fantasma. Conseguimos encontrar a família dela em São Paulo e fizemos uma vaquinha para mandá-la pra lá. Nunca mais tivemos notícia. Gostava de todas, almoçavam todos os dias aqui”, lembra Ana. 

A Ladeira da Conceição foi construída em 1549, pelo espanhol Filipe Guilhem.  Foi a primeira ligação entre a orla da Baía e a Cidade Alta. Por ser muito íngreme, as carroças tinham dificuldade de subir. Foi necessário fundar outra ladeira, a da Preguiça. Em 2020, ganhou uma requalificação, entregue pelo ex-prefeito ACM Neto, no fim de 2020, em cerimônia simbólica, por conta da pandemia. Revitalizada, a ladeira agora busca ser novamente uma atração turística da capital, resgatando um pouco dos tempos glamurosos da antiga Salvador. 

Ladeira em números

1549 
É o ano de fundação da Ladeira da Conceição, a primeira que ligou as Cidades Baixa e Alta 

R$ 3,4 milhões
Foi o valor aproximado investido na reforma da Ladeira da Conceição. 
Os arcos ganharam reforma externa e interna, além do novo calçamento

15
Arcos, em números pares, existem na  Conceição, que sustenta a Montanha. Eles abrigam artífices em mármores e metais, produzindo todo tipo de trabalho e arte, sempre sob encomenda

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