Em vídeos e imagens, moradores da favela do Jacarezinho mostram ação da polícia e mortes dentro de casa | Fotos: reprodução
“Operação Exceptis” da Polícia Civil do Rio de Janeiro, começou na manhã desta quinta (6) e se estende pela tarde. “Polícia e governador estão pouco se lixando para liminar do STF que proíbe ações”, diz coordenador da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial
Uma operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro deixou ao menos 25 mortos na favela do Jacarezinho, na zona norte da capital fluminense, na manhã desta quinta-feira (6/5). Segundo o G1, o policial civil André Leonardo de Mello Frias foi baleado na cabeça e outras 24 pessoas morreram durante a ação. Ao menos dois policiais civis e dois passageiros que estavam dentro do vagão da linha 2, altura da estação Triagem do metrô, também foram feridas durante os disparos.
À Ponte, a MetrôRio informou que um passageiro foi atingido por estilhaços de vidro e outro atingida de raspão no braço, mas foram socorridos pelo Samu. Um dos moradores relatou que presenciou duas pessoas sendo mortas dentro da casa onde mora com a avó durante a perseguição policial e que houve invasão de residências. “O respeito com os moradores nunca tem, isso é uma população, mas acho que eles pensam que estão no Iraque”, disse ao G1. “Havia dois helicópteros que davam tiros”, disse um morador à Ponte, que saía da casa de um familiar no momento em que a ação começou. “A gente recebeu denúncias de moradores de corpos caídos em cima das lajes, os policiais não deixando serem retirados”, prosseguiu.
Por volta das 8h, o LabJaca (Laboratório de Dados e Narrativas na Favela do Jacarezinho) divulgou vídeo e relatos de moradores da comunidade mostrando a presença do “caveirão aéreo”, como é apelidado o helicóptero da polícia. Um dos relatos de moradores colhidos pelo perfil diz: “Estamos presos dentro de casa sufocando com a bomba de pimenta e não tem como sair”. Nas redes sociais, também havia relatos de moradores informando terem sido atingidos por estilhaços. A reportagem também recebeu diversas imagens de corpos espalhados em vielas e lajes de casas.
Imagens publicadas em redes sociais mostra que um homem foi morto sentado em uma cadeira | Foto: Joel Luiz Costa/Twitter
De acordo com a corporação, a ação, intitulada “Operação Exceptis”, foi organizada pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, com apoio de outras unidades do Departamento-Geral de Polícia Especializada, do Departamento-Geral de Polícia da Capital e da Core (Coordenadoria de Recursos Especiais) contra a atuação de traficantes que estariam aliciando crianças e adolescentes para integrar o Comando Vermelho, facção que domina o território.
Segundo a corporação, a investigação havia identificado 21 membros da quadrilha após quebra do sigilo telefônico autorizado pela Justiça. Na nota oficial da PCERJ, não é informado se houve autorização prévia para a operação, já que desde junho do ano passado o STF (Supremo Tribunal Federal) proibiu o ingresso das forças policiais em comunidades, que só podem ocorrer em casos excepcionais. A Ponte procurou a assessoria da PCERJ e do Ministério Público Estadual, mas até o momento não se manifestaram.
A Defensoria Pública informou que o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos e a Ouvidoria do órgão estão no local ouvindo moradores e apurando as circunstâncias da operação para tomar as medidas cabíveis. “Desde já, manifestamos nosso pesar e solidariedade aos familiares de todas as vítimas de mais essa tragédia a acometer nosso estado”, declarou em nota.
‘Barbárie da barbárie’
A plataforma Fogo Cruzado, que monitora tiroteios, informou que a operação desta quinta-feira é “a 2ª maior chacina da história do Rio de Janeiro”, que até o momento contabiliza 25 mortos. Já o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF) diz que “é a maior entre as chacinas oriundas de uma operação avalizada pelas autoridades públicas em toda a história democrática do estado do Rio de Janeiro”.
Fransergio Goulart, da Coordenação Executiva da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial da Baixada Fluminense, criticou veementemente a operação de hoje. “Essa barbárie que aconteceu no Jacarezinho, ou seja, são 23 mortos, mas a gente que tem os contatos com os moradores, com esse territórios, sabemos que esse número é muito maior do que 23”, diz.
Ele lembra que novamente o governo do Rio de Janeiro descumpriu a liminar deferida pelo ministro Edson Fachin e referendada pelo plenário da corte que proibiu operações policiais nas comunidades durante a pandemia da Covid-19, a partir da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 635, conhecida como “ADPF das Favelas”. “É a barbárie da barbárie, é a chacina, é o descumprimento dessa cautelar do STF, ou seja, a polícia, o governador do Estado está pouco se lixando, para essa liminar.”
Segundo Fransergio, o Ministério Público sabia da operação e nada fez para controlar o uso da força da policia. “Se ele foi avisado pela polícia dessa operação, o que ele fez para fazer o seu papel constitucional de controle das polícias? E tem um agravante nessa operação, o MP foi avisado, a polícia fez a operação e a mídia hegemônica, os jornais, os programas televisivos, mais uma vez fazendo aquele show midiático a partir das dores, dos moradores e das moradoras que moram no Jacarezinho e legitimando essa ação policial. Não dá mais”, diz.
Há menos de 20 dias uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF) com a presença do ministro Edson Fachin tratou da criação coletiva de um plano de redução de letalidade policial.
O evento discutiu estratégias de redução da letalidade policial no RJ e contou com a participação de diversas organizações, entre elas Educafro, Justiça Global, Redes da Maré, Conectas Direitos Humanos, Movimento Negro Unificado, Iser, Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial/IDMJR, Coletivo Papo Reto e Mães de Manguinhos.
O representante da IDMJR aponta que o discurso da excepcionalidade para fazer a operação foi utilizado novamente, mas sem o controle do MP. “Na cautelar do STF, as operações policiais podem acontecer no contexto da pandemia com excepcionalidade, só que o Estado, a polícia sempre cria uma excepcionalidade. Apesar disso, a medida diz que a PM noticie sempre o MP, para aí sim o MP acompanhar com recomendações, só que o MP não faz o papel constitucional de controle da polícia”.
‘Isso aqui não é democracia’
Lucas Louback, coordenador de projetos e ativista no Rio de Paz estava trabalhando na sede da entidade dentro da comunidade do Jacarezinho com entrega de alimentos. Ele conta que chegou às 11h30 da manhã e se deparou com o cenário de tristeza e derramamento de sangue. “É algo que sempre nos choca devido ao derramamento de sangue, o número de mortes e justamente em um dia onde nós entregamos comida. Nós estamos aqui caminhando, vendo todo o estrago, ouvindo os relatos dos moradores, a tristeza, o lamento das perdas”.
Ele questiona: “Como essa tragédia tem perpetuado mandato atrás de mandato e não há mudança no sistema e na política de segurança pública do Rio de Janeiro?”.
Em vídeo publicado no Twitter, o advogado Joel Luiz Costa, fundador do Instituto de Defesa da População Negra, que atua no Jacarezinho criticou a violência cotidiana vivida pelas pessoas que moram nas comunidades cariocas. “Isso aqui não democracia, não é nada do que a gente pensa que é viver em sociedade, é muito cruel você estar na rua, sentar com os amigos para tomar uma cerveja, fazer coisas triviais que todo ser humano faz, viver a vida e ver uma dezena de marcas de tiros na porta de um bar, de uma loja de cosméticos, cano estourado, balas e balas no chão, ninguém merece isso”.
Emocionado, ele esteve no local junto as Comissões de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e com a Defensoria Pública do RJ. Ele reiterou que ninguém merece viver em cenário de guerra. “Não é justo entrar no seu território e ver casas arrombadas, sangue no chão, que dia das mães essas pessoas vão ter? Que final de semana as pessoas vão ter?”.
Ponte