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Batatinha frita 1, 2, 3 e o capitalismo falido: por que Round 6 se tornou um fenômeno?

Série sul-coreana foi lançada pela Netflix em setembro; escolas têm enviado alertas aos pais de crianças  




Amarelinha, dança das cadeiras, baleado, elástico, esconde-esconde, morto-vivo. É provável que você conheça essas brincadeiras - e que tenha jogado todas elas na infância. Agora, imagine se, de uma hora para outra, vencer seis rodadas de brincadeiras de criança te rendesse uma bolada milionária. O problema é que, se você perdesse, não seria somente ‘eliminado’, mas morto.

Pois essa é a história de Round 6, uma série sul-coreana lançada pela Netflix em meados de setembro que, em poucas semanas, se tornou um fenômeno mundial. Só que no lugar das brincadeiras brasileiras, clássicos de uma infância na Coreia do Sul, que tem espaço para bolinhas de gude e cabo de guerra, mas também pela famigerada ‘Batatinha frita, 1, 2, 3’, a boneca capaz de fuzilar alguém que estiver se movendo na hora em que deveria congelar como estátua.

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De lá para cá, Round 6 - ou Squid Game, em outras traduções - se tornou a mais vista do serviço em 83 países, ultrapassou La Casa de Papel como a série internacional mais assistida e deve passar Bridgerton como a mais vista da história do streaming. Mas o que explicaria tanto sucesso, ainda mais em um idioma tão distante da maioria dos brasileiros?

Para a pesquisadora Daniela Mazur, doutoranda em Comunicação na Universidade Federal Fluminense (UFF) e integrante do grupo MidiÁsia, os números de Round 6 são de fato expressivos, por se tratar da Coreia do Sul.

    "É um produto televisivo de língua não-inglesa, de um país que não é central nos fluxos midiáticos. A Coreia do Sul nunca foi um player que conseguisse bater de frente com os Estados Unidos, numa perspectiva histórica", diz.

Ao contrário dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, é uma obra que vem de um país que faz parte de outra lógica cultural e de poder. No entanto, não dá para desconectar a série da hallyu, a chamada 'onda coreana'. Em setembro, uma reportagem do CORREIO mostrou como o governo da Coreia do Sul passou a investir na indústria cultural do país, transformando em política pública o fomento às artes, incluindo as séries de televisão e a música, com o k-pop.

"Squid Game vem nesse contexto, mas também num momento em que estamos numa crise global sanitária e numa crise política nacional. Vemos narrativas desse estilo, que falam de possibilidades em vista de um mundo injusto graças a um capitalismo que já não se sustenta da forma como nos prometeram", analisa.


Além da bolha
Ainda assim, a expectativa era de que a repercussão ficasse restrita ao nicho que já consome ou tem proximidade com os k-dramas - as séries sul-coreanas, hoje amplamente difundidas em plataformas de streaming. Enquanto atualmente é possível encontrar mais de 150 obras traduzidas para o português na Netflix brasileira, por exemplo, há cinco anos, não era assim.

"A gente tinha menos de 10 títulos. Mas isso se potencializou de uma forma muito intensa uma vez que a Netflix entrou na Coreia do Sul, que foi só em 2016. No Brasil, ela está desde 2011. Mas a partir dessa entrada lá, a gente começa a ver a compra e o desenvolvimento de títulos coreanos aparecendo nos catálogos internacionais", afirma Daniela, que estuda a hallyu e a ficção sul-coreana.

Apesar de originalmente fazer parte de um nicho, Round 6 conseguiu ir além da bolha, como explica o criador do canal Série Maníacos, maior do gênero no Brasil, Michel Arouca. Para entender o contexto, ele destaca que a Netflix tem a distribuição mais eficiente do mundo, com 210 milhões de assinantes.

Ainda assim, a divulgação boca a boca foi primordial.

    “Algumas vezes até mesmo a Netflix é pega de surpresa com um sucesso global. Não houve um grande investimento de marketing para o lançamento de Round 6. A série explodiu porque amigos indicaram para outros amigos e isso gerou um efeito dominó global. Algo parecido aconteceu com La Casa de Papel, que também se tornou um hit mundial no boca a boca”, diz, citando a produção espanhola.

Uma prova disso é que, em menos de três semanas, mais de 165 milhões de pessoas já tinham sido alcançadas pela série na web, segundo um levantamento da empresa Decode. Isso significa que elas podem ter visto vídeos no Tik Tok, memes no Twitter ou mesmo stories de pessoas brincando com filtros que imitam o jogo da Batatinha frita 1, 2, 3.

Para Michel Arouca, há uma curiosidade sobre os símbolos utilizados na série - inclusive, alguns são usados nas máscaras dos trabalhadores dos jogos. Alguns têm triângulos, outros têm círculos e um terceiro grupo usa quadrados, numa divisão que também indica uma hierarquia entre eles.

“A série não possui esse didatismo na sua narrativa e não explica a fundo as simbologias e com isso, a internet é inundada com uma demanda de interesse, que é suprida com uma oferta enorme de vídeos e artigos que se propõe a fazer essas análises.  Tudo isso alimenta ainda mais o hype de Round 6”, acrescenta.
Os símbolos da série, como os usados nas máscaras dos trabalhadores dos jogos, têm gerado curiosidade (Foto: Netflix/Divulgação)

Social
Definir Round 6 por um único aspecto é difícil. Séries se tornam fenômenos, em geral, por um conjunto de elementos, segundo a pesquisadora e professora Maíra Bianchini, doutora em Comunicação e Cultura e integrante do grupo de pesquisa A-Tevê/Laboratório de Análise de Teleficção da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

    "Tem a fascinação humana por situações limítrofes de vida ou morte e desse jogo de sobrevivência. Jogos Vorazes e Jogos Mortais, por exemplo, têm essa lógica do jogo levado às últimas consequências", diz, citando duas franquias do cinema.

O apelo é semelhante até mesmo ao de reality shows como o Big Brother Brasil. Tanto no BBB quanto em Round 6, não é estranho que quem assiste comece a se perguntar como agiria naquela situação, o que faria para sobreviver ou até que extremo iria.

Já de La Casa de Papel, de quem herdou o posto de série em língua não-inglesa mais assistida, Round 6 também pode se relacionar com a questão sobre a justiça social. "Existe uma crítica social a um determinado modelo de sociedade em que as pessoas são levadas à miséria e uma oportunidade de sair dali com muito dinheiro, mesmo que seja focado em um contexto terrível. É um contexto que a gente só consegue lidar por ser ficcional", analisa Maíra.

Ao contrário de outras produções com roteiros semelhantes, como Jogos Vorazes, Jogos Mortais ou mesmo a japonesa Battle Royale, os participantes do Squid Game escolheram estar ali. Além de aceitar participar do jogo, eles têm a oportunidade de acabar com ele. Mas, ainda no segundo episódio da trama, decidem voltar a ele.

Além disso, a série é ambientada na Coreia do Sul atual, mas, na prática, é como se houvesse algo de distópico no próprio entendimento da vida e da morte. "Eles escolhem voltar porque o sistema é falido. Na realidade, as escolhas não existem. A falta de escolha no dia a dia e a falta de esperança indicam um potencial de ganhar lá. Pelo menos lá, eles vão morrer tentando", afirma Daniela Mazur, da UFF.

Esse diálogo é muito íntimo, seja isso proposital ou não. No fim, ver pessoas desesperadas por suas dívidas acaba remetendo à vivência de muita gente. "Nós, latinos, acabamos sentindo de forma mais intensa esses efeitos. Nosso entendimento de sociedade passa por essa construção secular de lugar de poder, mas também de abuso e superioridade. Os jogadores são apenas peões para criar divertimento para os vips. É um jogo sádico que apresenta exatamente as estruturas de poder de uma sociedade capitalista em que quem dá as cartas e se diverte com o jogo é quem tem mais dinheiro", completa Daniela.

De fato, a crítica ao modelo capitalista de sociedade é real. O próprio criador da série, Hwang Dong-hyuk, explicou em entrevistas recentes.

    “Eu quis escrever como uma alegoria a sociedade do capitalismo moderno, algo que tem uma competição extremapela vida. Mas quis usar todos os tipos de personagens que encontramos na vida real”, disse Dong-hyuk, em entrevista à revista Variety.


Violência
Espectadores acostumados com os doramas - as novelas sul-coreanas - talvez se surpreendam com o quão gráficas são as cenas da obra. Round 6 não se acanha ao mostrar a violência. Para Daniela, contudo, isso é uma característica comum desse subgênero do horror. Esse tipo de produção não foge da representação da miséria humana, assim como o cinema de arte sul-coreano, enquanto as novelas da tv aberta se assemelham às novelas brasileiras.

"Squid Game é um original Netflix, que foi pensado para a plataforma. Então, os elementos que podem ser exibidos não passam diretamente por questões básicas das emissoras, como o que pode ser exibido em determinados horários. Essas perspectivas dependem da plataforma", diz.

E aqui vale um adendo às famílias, caso não tenha ficado claro até então: apesar de lidar com brincadeiras infantis, Round 6 não é uma série indicada para crianças. A classificação indicativa no Brasil, inclusive, é de 16 anos, justamente por toda a representação gráfica da violência. Os relatos de crianças que têm assistido com os pais, contudo, têm crescido. Nos últimos dias, uma carta aberta escrita pela coordenação de uma escola no Rio de Janeiro chegou a viralizar no Whatsapp.

Na última quinta-feira (8), o Colégio Montessori, em Cruz das Almas, fez o mesmo alerta em um comunicado aos responsáveis pelas crianças.

    “São conteúdos explícitos na série: violência, tortura psicológica, suicídio, tráfico de órgãos, cenas de sexo, palavras de baixo calão, entre outros”, escreve a coordenação pedagógica.

Na prática, assim como o cinema de arte coreano, Round Six se propõe a trazer questões possíveis para faixa etária do produto, na avaliação de Daniela. “A gente que é mais velho assiste aquilo para além da violência, para além do dinheiro, porque tudo é muito próximo. A gente quase sente que é um amigo nosso que participa de um jogo desse”, analisa.

Mas se a 'cultura' de séries só cresceu e se fortaleceu ao longo das últimas duas décadas, a Netflix não apenas se beneficia disso como se beneficia desse contexto, como explica Maíra Bianchini, da Ufba.

"A gente vem sendo exposto a obras que não são só americanas. Se tivemos Lost e Game of Thrones como fenômenos globais, a gente também teve La Casa de Papel. Dark também fez bastante sucesso e a gente tem menos tradição ainda com obras alemãs. Ter uma Round 6 da vida é o que todas essas empresas querem. Se elas tivessem uma fórmula para isso, elas sempre fariam", conclui.

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