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Filme 'Marte Um' expõe dramas da periferia brasileira


 

Obra cinematográfica fala dos desejos de um garoto da periferia em fazer uma viagem ao espaço

Deivid (Cícero Lucas), ou Deivin, como costuma ser carinhosamente chamado, é um garoto que mora na região periférica de Belo Horizonte, e tem um sonho incomum: quer fazer parte da missão espacial que pretende viajar a Marte e colonizar o planeta vermelho (de fato, a Nasa trabalha com planos de enviar uma missão tripulada a Marte no futuro).

O desejo de Deivin é o ponto central de Marte Um, novo filme de Gabriel Martins. Mas entre os sonhos de astrofísica e as pesquisas amadoras feitas em casa (Deivin trabalha na confecção de um telescópio próprio, feito de canos e materiais descartados), a trama também destaca os demais membros da família Martins e seus dilemas pessoais, todos muito palpáveis e concretos.

A mãe, Tércia (Rejane Faria), caiu em uma pegadinha de programa de televisão e, depois disso, passa a sofrer de uma angústia constante com a certeza de que tudo na sua vida vai dar errado depois daquele momento. Já o pai, Wellington (Carlos Francisco), trabalha como porteiro em um condomínio de classe alta e luta para se manter sóbrio da bebida, participando constantemente de reuniões do AA (Alcoólicos Anônimos).

Em Marte Um, os dramas familiares se desenham em um sentido muito realista e natural daquilo que acontece em grande parte dos lares periféricos, na luta por um futuro melhor e na tentativa de manter uma vida digna no presente. Não à toa, o filme começa com a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018, o que prenuncia e deixa em subtexto os embates e dificuldades que essas pessoas enfrentam e enfrentarão no seu dia a dia.     

Não demora para que as contas da casa apertem e os dilemas pessoais de cada um comecem a aflorar. 

Para completar, a filha mais velha da família, a jovem Eunice (Camila Damião), decide sair de casa para morar sozinha depois que se apaixona por outra garota, o que revela um lado da sexualidade da garota que os pais nem ao menos conheciam. Enquanto isso, Deivin sonha.

Caminhos cruzados 

Marte Um chega aos cinemas essa semana depois de uma trajetória por festivais internacionais (estreou mundialmente no Festival de Sundance). No Brasil, passou recentemente no Festival de Gramado, de onde saiu com os prêmios de Melhor Roteiro, Trilha Musical e o Prêmio Especial do Júri, além de ter sido escolhido como melhor filme pelo Júri Popular.

Esse é o terceiro longa-metragem de Gabriel Martins, mas o primeiro em que ele dirige sozinho. Antes disso, já havia feito Aliança (2014), junto com João Toledo e Leonardo Amaral; e No Coração do Mundo (2019), em parceria com Maurílio Martins (há ainda um quarto, se contarmos o filme de terror em episódios O Nó do Diabo, de 2017, em que Martins dirige um dos segmentos). 

É uma carreira já sólida dentro do cinema independente nacional, seguida também por vários curtas-metragens que ajudaram a firmar não apenas seu trabalho e seus temas prioritários, mas também o da sua produtora, a Filmes de Plástico (alicerçada junto com Maurílio Martins, André Novais Oliveira – diretor do maravilhoso Temporada (2018) – e do produtor Thiago Macêdo Correia).

É importante situar essa trajetória porque há uma grande coesão, tanto formal quanto temática, que passeia por esses filmes e pelos trabalhos desses realizadores. Marte Um serve para coroar (e levar adiante) um cinema que lida com questões familiares, a labuta diária de pessoas negras moradoras da periferia, permeadas pelo afeto das relações e pelo sentido de união e cooperação, especialmente nos momentos de crise, embalado por um tratamento naturalista das ações e que capta o frescor do dia a dia de modo latente e sem firulas.

Para onde ir?

De todos os filmes feitos por Martins, o novo longa talvez se assemelhe mais com o curta Nada (2017), em que uma jovem da mesma periferia (ela poderia ser prima de Deivin), estudante do último ano do ensino médio, resolve não prestar o vestibular. Simplesmente não fazer nada – ela sonha mesmo em ser MC. 

De certa forma, esse é o dilema que se espelha na vida da família Martins naquele momento. O que fazer a seguir? Que rumo tomar? (pergunta ainda mais pertinente no Brasil de hoje em que as desigualdades sociais voltaram a crescer nos últimos anos, dado o governo que temos).

O pai de Deivin quer a todo custo que ele jogue futebol – consegue para o garoto uma chance de participar de uma peneira super concorrida para um time local. Eunice sai de casa, mas as perspectivas de trabalho ainda são muito vagas. A mãe passa por uma crise existencial enquanto precisa segurar as pontas dentro de casa.

No fundo, o sonho de Deivin em ser astrofísico e ir para Marte, por mais surreal que pareça, também está alicerçado em uma convicção concreta e possível, caso ele possa estudar e realmente enveredar por esse caminho. Por que não?   

Às implicações estritamente políticas que isso tem na vida de cada cidadão brasileiro (a partir das possibilidades que se abrem ou não para as pessoas, especialmente as de classe sociais mais baixas), o diretor-roteirista soma uma carga política de afetos que é também bastante importante: Deivin é o elo que mantém aquela família em união, na crença de que algo possa ser mais do que já é. O seu desejo de furar a bolha da periferia e conquistar o mundo – e, neste caso, o espaço sideral – é o desejo de todos eles em conquistar uma posição superior na sociedade. 

Pisar em solo marciano é uma projeção de futuro, tanto para a humanidade quanto para Deivin – mas não uma projeção futurista, no sentido da ficção científica especulativa. Isso insere aqueles personagens em um limiar muito próximo da nossa vida cotidiana. 

São pessoas que reconheceríamos fácil, não só pelos conflitos, mas pelo comportamento ante as desavenças. E, claro, por alimentar os sonhos de que no futuro – e que seja um futuro muito próximo – as coisas hão de ser melhores.

 

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